Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
ou a autonomia da personalidade
tinha-se cansado de lutar, de pegar na vida que não era sua e de tentar transformá-la em qualquer coisa de útil. pareceu-lhe, assim de repente, que a utilidade seria a resposta viável. deliberou de imediato nas possibilidades e pôs-se ao serviço da comunidade. apresentou-se como ser responsável, idóneo, capaz e adequado. trajou a rigor e impecavelmente penteado validou-se a quem de direito. colocou-se à disposição e vinculou a disponibilidade para se comprometer. começou de imediato. trabalhou, especulou e suou, esforçou-se, esgotou-se e por fim vendeu-se. concluiu que a utilidade tinha tudo para ser extraviada.
eu devia ser ungida
e passada por água benta, e consagrada, de novo bendita e excomungada. eu não sou boa rês. atirem-me aos porcos e pendurem-me no pelourinho. chicoteada, excomungada outra vez e a seguir lavo os pés de quem quiserem. penitencio-me descalça e jejuo uma quarentena inteirinha. dispo todo o heretismo que carrego na lombada e perpetuo reverência para toda a eternidade. mas,
por favor,
deixem-me estar.
- Ao tempo que estou aqui
- e esperas por quê?
- não sei bem
- esperas alguém?
- não, acho que não
- e estás há quanto tempo?
- não sei, ... dias, não sei quantos
- e tens comido?
- sim
- e comes bem?
- acho que sim
....
- continuas aqui?
- parece que sim
- já sabes o que esperas?
- é preciso saber? tu precisas saber?
- eu? ... não, acho que não...
- então porquê tanta insistência?
- incomodo?
- se continuares a fazer perguntas sim.
- então deixo-te
- já me deixaste, lembras-te?
-.não comeces.
- não começo o quê?
- não comeces outra vez com essa chantagem deprimente
- chantagem? deprimente? estás a gozar comigo?
- eu??? não, e tu? estás a gozar comigo?
- estamos a falar de quê ao certo?
- não sei. pensei que sabias
- não. olha, vou ali
............
- continuas aqui?
- bolas mas que chatice! o que é que te parece?
- parece-me que estás a enlouquecer...
- jura? e só passados tantos anos é que te apercebeste?
- já vi que não dá para conversar contigo...
- ??? mas porquê? não estamos a conversar? isto não é uma conversa?
- não. isto não é nada.
- não é nada? então o que consideras dois adultos num espaço físico e temporal em simultâneo a verbalizar um com o outro? sonho?
ilusão?
- nós não estamos a ter uma conversa.
- nós não estamos a ter uma conversa? mas o que é que isso quer dizer?
- quer dizer que não estamos a conversar. estamos a agredir-nos um ao outro
- não. discordo completamente. eu não te estou a agredir e não me sinto agredido por ti.
- não? pois eu sinto-me
- sentes-te o quê?
- esquece.não sinto nada.
- agora sim, estás a desconversar.
- pois estou.mas também discordo porque inicialmente não estávamos a ter uma conversa.
- não estávamos a ter uma conversa?
- não. não estávamos a ter uma conversa.
- ok. então podes ir andando porque eu estou mesmo doido. estou a falar sozinho.
- iá. ou com os teus fantasmas.
- ah ah.não acredito em fantasmas.
- e eu não acredito que tu existes.
- então também estás louca porque agora desataste a falar sozinha.
- sim
- sim o quê?
- olha, posso esperar contigo?
ide catar piolhos para bem longe
ide arranjar uma vidinha e, se possível
dar uma valente queca
agradecida
o que eu pagava para que um homem me arrastasse para uma cama ao som de Grizzly Bear...
a doença na vida, é uma forma de vida por si própria.
é a forma que eu tenho de te dizer que estou só, fraca e preciso de ajuda.
é uma das formas de sangramento sem sujar a toalha debaixo do prato.
queria não ter de te pedir essa ajuda mas não estou a dar conta do recado.
queria não ter de lidar com toda esta tortura que me envenena o sangue mas não sei desfazer o enlace que me faz vomitar em surdina.
este tumor que me arrebenta por dentro e me corrói as entranhas lentamente é toda esta fúria por nunca te ter dito aquilo que sou efectivamente.
quero com isto dizer que esta leucemia cerebral me faz despedir-me de ti. porque enquanto tu fores eu, enquanto este cancro me turvar as emoções e me tirar o ar que respiro, não te posso ver. és a doença em forma de gente, és a tuberculose que me asfixia e, muito sinceramente, a forma de vida que sou, és tu no teu pior.
- então, como tem passado?
- ai filha, que nem sinto as pernas com tanta chuva que já me ensopou até aos ossos, mais o senhorio que agora resolveu pedir mais dinheiro para me arreliar com tanta despesa...
- mas assim? de repente?
- não filha, desde que me deixei de o chupar pela noite dentro...
- (cof, cof ....????????)
- sim filha, desde que deixei de praticar aquelas coisas..., sabes, aquelas...
- não, não sei, mas olhe tenho que ir andando, sabe...
- 'tás com vergonha agora filha? olha que não é para teres vergonha!
- vergonha, eu? não... claro que não...
- 'tás 'tás, vê-se logo!
- mas não estou. já lhe disse que não estou... quer dizer, só não estava à espera que...
- que quê filha? que eu o chupasse, ou que ele me aumentasse a renda????
- ... pois, se quer que lhe diga, não estava nada à espera da conversa toda
- porquê filha? achas que não tenho idade para ter estas conversas contigo?
- não, não é isso...
- ... ou achas que não tenho idade para outras coisas?
- olhe dona amélia, eu tenho mesmo que ir, estou cheia de pressa
- estás com pressa para quê filha? vais a algum sítio especial?
- vou, por acaso vou!
- e achas que assim ele não te aumenta a renda, é?
às vezes, tomar uma decisão é assim quase como uma espécie de escolha suicida. Optamos por matar o ego que cá vive em nós. ou não. ou o deixamos a pairar por aí, ele que se espete, nada a ver com isso. podemos optar pelo fácil. é isso. adeus aos mortais que me conheciam.
outras coisas que poderiam ser úteis à civilização que
languidamente se despede...
... não ver o prós e contras.
a sério, não faz bem a ninguém
sexta feira à noite. vinho. música. filmes sacados da net. meias daquelas com interior quente compradas no chinês. eu. frasco de amêndoas. mais música. aquecedor a disparar níveis incomportáveis de consumo. cigarros. malboro. ainda dizem que há solidão.